"Tens que ouvir isto", disse-me o Paulo
enquanto me estendia uma cassete BASF amarela etiquetada "Ten - Pearl
Jam" que acabara de tirar do seu inseparável walkman.
O Paulo era o meu primo de Lisboa que, todos os verões,
ia passar uma temporada a casa dos meus pais a Trás-os-Montes. E todos os anos,
na mochila, levava consigo uma carrada de cassetes - originais e piratas - das
bandas que estivesse a ouvir na altura. E eram sempre muitas. Eram sempre mais
as cassetes que a roupa.
Nascido três anos antes de mim, o Paulo foi o irmão mais velho que nunca tive e
a minha primeira grande influência no que toca a preferências musicais. Foi com
ele - e graças à sua mochila atrofiada de cassetes - que ouvi pela primeira vez
Pixies, Aerosmith, Guns n' Roses, Def Leppard, Van Halen, Metallica, Nirvana,
Radiohead, Billy Idol, Bon Jovi (antes do abandalhamento), Cult e INXS... entre
muitas outras bandas. Por isso, quando naquele início de Verão de 1992 o Paulo me
passou a cassete amarela e disse "tens que ouvir isto"... eu
limitei-me de forma obediente a pô-la a tocar no leitor do quarto enquanto ele
desfazia a mala.
Confesso que não foi amor à primeira vista. Para um
"rockeiro" habituado à sonoridade vibrante do "glam rock" e
do "hair metal", "Ten" era demasiado... soturno. Não era
música para ouvir no Verão. Não me impressionou. E devo ter feito uma expressão
qualquer de desprezo depois da primeira audição que deixou o meu primo
incrédulo. "Tás marado?! Isto é um ganda som"!... "Não é a minha
onda", respondi-lhe.
Mas ao longo das quatro ou cinco semanas seguintes o rapaz não desarmou. Andou
com a cassete sempre atrás de si e, onde quer que houvesse um leitor, lá tinha
eu que gramar com aquele som deprimente ou com ele a cantar "Even
Flow", "Alive", "Black" e "Jeremy" com os
auriculares do walkman enfiados nos ouvidos - o que era infinitamente pior. Era
na cozinha ao almoço; na esplanada do café de Paradela onde a avantajada filha
da dona servia às mesas ao fim da tarde; no quarto durante as últimas conversas
da noite; no Fiat vermelho do meu pai durante os passeios de fim-de-semana; no
relvado da piscina municipal de Vila Real ou da praia fluvial enquanto bebíamos
coca-cola, comíamos gelados e cachorros e desapercebidamente deitávamos o olho
às "aveques" em bikini. Mas não havia forma de "Ten" me
entrar no sistema ainda sobrecarregado com o(s) fabuloso(s) e extasiante(s)
"Use Your Illusion" - isso sim, disco(s) apropriado(s) para o Verão.
As férias chegavam ao fim e o Paulo regressava a Lisboa.
Mas antes de se meter no autocarro voltou a abrir o walkman e a estender-me a
BASF: "Fica com esta que eu gravo outra para mim". Admito - hoje com
alguma vergonha - ter aceite apenas por uma questão de educação.
Era sempre um momento triste despedirmo-nos do Paulo. E a
saudade insinuava-se assim que ele pisava o primeiro degrau a subir para o
autocarro, e invadia-nos completamente à medida que se ia afastando.
Já no regresso a casa, sentado no banco do pendura do Fiat
vermelho e com a lágrima no canto do olho, reparo que ainda seguro a cassete
amarela. Retiro-a da pequena caixa de plástico e enterro-a no leitor do
auto-rádio. "Even Flow" está a acabar. E, de repente, talvez devido à
tristeza do momento, ao ouvir o primeiro - e memorável - riff da guitarra de
Stone Gossard em "Alive" faz-se luz algures no meu cérebro. A cabeça
começa a abanar ao ritmo da bateria e, surpreendentemente, dou por mim a cantar
uma letra que desconhecia conhecer por cima da voz de Eddie Vedder. Subitamente,
aquela música fazia sentido para mim.
O mais surpreendente, porém, é que à medida que vou
ouvindo, apercebo-me que está lá tudo! O Verão todo! As saladas frias de feijão
verde da minha mãe; a bem apetrechada filha da dona do café de Paradela; as
conversas parvas de fim-de-noite; o passeio às Fisgas de Ermelo e a Mirandela;
as "aveques" em biquini no Codessais... Tudo!
E sorri ao perceber que, afinal, o meu "irmão mais
velho" tinha, mais uma vez, razão. É, decididamente, um "ganda som"
primo. E obrigado pela cassete.
NOTA: Passam precisamente hoje 21 anos sobre o lançamento de "Ten", dos Pearl Jam, um dos melhores discos rock de sempre.
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