terça-feira, abril 11, 2006
Um homem não chora - (III Parte)
Ultrapassadas que estão as dificuldades das últimas três semanas, aqui fica o apoteótico final da saga "Um homem não chora", iniciada no dia 27 de Março e continuada no dia seguinte. Espero que o tempo de espera não tenha potenciado as vossas expectativas!



(...)

Mas nesse dia, no restaurante, o homem surpreendeu-me. Não fez nada. Nem sequer um olhar ameaçador na direcção do canalha. Limitou-se a vê-lo sair porta fora. E sentou-se à frente do prato que acabara de lhe ser servido como uma sopa a um mendigo. Com o olhar mais triste que alguma vez lhe havia visto. Não era só mágoa. Não era só humilhação. Era qualquer coisa de novo – e desconfortável – tanto para ele como para mim. Era desespero, percebi mais tarde.

Com a voz a tremer disse-me qualquer coisa que não me lembro. Acho que nem ouvi. Porque naquele momento estava completamente petrificado. À minha frente, sentado do outro lado de uma travessa com carne e batatas fritas, o mais transmontano dos transmontanos que conheço, o mais trolha dos trolhas, deitava a palma da mão aos olhos para tentar ocultar a mais improvável das heresias. E por debaixo da manápula do pedreiro vi surgir, para meu horror, uma lágrima a abrir caminho ao lado do nariz e contornar o lábio e descer o maxilar e, após um par de segundos de hesitação, deixar-se cair do queixo e precipitar-se sobre a toalha de papel.

Ficou ali. Esparramada. Evidente. À vista de todos. Pior... à minha vista. E, de repente, foi como se – passe o cliché – o mundo à minha volta e dentro de mim tivesse desabado silenciosamente. Senti os músculos fraquejarem como numa vertigem. Paralisei. E receava que se levantasse os olhos daquela mancha transparente me desse conta que estava a precipitar-me num vortex allanpoeneano. E nunca senti tanto medo como quando a sua mão subiu para a cabeça, revelando uns olhos húmidos e vermelhos. Não de raiva, como estava mais acostumado, mas de qualquer outra coisa que eu desconhecia e, portanto, temia. E nunca, até então, tiveram um tão grande pretexto para chorar.

O medo, porém, tem destas coisas. Transforma-nos em seres que não éramos antes. Em algo que ao longo da nossa existência até ao preciso momento em que o sentimos nunca houvéramos pensado em transformar-nos. Transfigura-nos. Torna-nos em criaturas sobrenaturais. Com poderes sobre-humanos. E no momento de maior terror que alguma vez houvera presenciado, na mais triste e miserável circunstância… não chorei. A crueldade do momento foi tão cauterizante que selou a nascente. Nem uma lágrima. Nem um soluço. Nenhuma reacção. Nada. Nem no restaurante. Nem no caminho para casa. Nem na privacidade dessa noite. Nem das noites nem dos dias que se seguiram durante as semanas, os meses, os anos que vieram... Nunca mais.

De um momento para o outro percebi que, afinal, o super-homem que me protegia dos vilões deste mundo não era invulnerável. Que o meu John Wayne da colher e da talocha não “disparava” assim tão rápido. E compreendi, exactamente naquele instante, que o meu pai era, enfim, apenas um homem. E que, como outro qualquer, tinha fraquezas constrangedoras. E que a muralha que eu, até aí, via nele, era a única coisa que me permitia o luxo de chorar por tudo e por nada nesse meu mundinho seguro. A muralha desabou às mãos de um simples e ignorante empreiteiro. E a minha ingenuidade tombou com ela.

O meu velho limpou os olhos e, com um improvável sorriso de resignação, disse para, pelo menos, aproveitar o almoço. Nunca um pedaço de carne me custara tanto a engolir. Nunca o silêncio à mesa me incomodou tanto. Durante tanto tempo.

Amaldiçoei o Redol do “Constantino das vacas” e a sua hipócrita presunção. Um homem não chora?!... o catano! Um homem chora quando não lhe resta mais nada. Quando esgota as soluções. Quando a única esperança é o milagre. Um homem chora quando tem que chorar. E se até agora não mais chorei – salvo uma excepção mesmo muito excepcional – não me considero mais ou melhor homem do que se o houvera feito. Acusam-me os que me conhecem melhor de cínico e insensível. De frio e distante. Mas por muito que me agrade a avaliação, esta também não é verdadeira. Acontece, simplesmente, que aquele incidente elevou a fasquia da minha sensibilidade. Não a perdi… só não esperem que me emocione com os patéticos revezes da vossa infeliz existência. Pois isso é tão improvável como alguém verter uma lágrima pelas desventuras do Oliver Twist dois dias depois de ler as Vinhas da Ira.

Não me macem com as vossas desgraças… eu já não quero saber!

posted by Raimundo @ terça-feira, abril 11, 2006  
0 Obscenidades evitáveis:
Enviar um comentário
<< Home
 
 


Nome: Raimundo
Morada: Algures em algum sítio, bem no meio de..., Portugal
Que mais queres tu?
Então vê o perfil

Blog aberto a fumadores. E não... não temos as dimensões estipuladas por lei para poder ter um espaço para fumadores. E como estamos num país de chibos, já estou mesmo a ver: um dia destes há uma denúncia anónima e aparecem-me aí uns estupores da ASAE para fechar o tasco!

http://www.totse.com/en/bad_ideas/ka_fucking_boom/atomic.html

Imbecilidades diárias
O Mundo desde o início
Mundos aliados
Mundos de subversão
Mundos da Cova
Mundos de sabedoria
Mundos em hibernação
Usurários

Powered by Blogger

15n41n1