Não concebo a vida sem música. Adoro-a. Dependo dela. Tenho que ouvi-la constantemente. Acompanha-me como um amigo. Nos bons e nos maus momentos. Em casa, no carro, no trabalho, no barbeiro. Acordo com “Good morning”, dos Beatles. Adormeço com “Your ghost”, da Kristin Hersh. Aonde quer que vá, o meu velhinho walkman segue atrás recheado com uma das quase 300 mix-tapes que fui “criando” ao longo dos últimos 15 anos. Sem música, sinto-me perdido. Entro em pânico. Fico angustiado. Atormenta-me aquela sensação de que algo nefasto está para acontecer. Só porque não a oiço… a minha música. Não concebo a vida sem transportes públicos. Detesto-os ainda assim. Reconheço-lhes as virtudes, mas desprezo-os. Sou apologista da sua utilização massiva, mas apenas por uma questão de comodidade e organização urbana. Utilizo-os apenas e só quando estritamente necessário. Talvez por vergonha de expor a minha necessidade de viajar numa lata malcheirosa e desconfortável perante tantos estranhos. Talvez por me sentir igual ao resto dos passageiros que miro com a condescendência que reservo aos fracassados. Sou inútil como o velho com catarro à minha frente que vai a caminho dos correios levantar a pensão. Fútil como a universitária betinha do banco do lado que folheia a Lux. Mentiroso como o sujeito de fato azul e cabelo lambido que inspira confiança mas transpira falsidade. Triste como indiano de olhar vago que segue de pé agarrado à barra do tecto e que a cada solavanco luta para não deixar cair nenhuma das rosas plastificadas que trás no molho debaixo do outro braço. Acho que toda a gente odeia transportes públicos. Nunca vi ninguém sorrir num autocarro ou num comboio suburbano, a não ser, pontualmente, uma criança. Mas essa ainda não tem nada do que se envergonhar. Bom… mas pelo menos tenho a minha música. Não concebo a vida sem telemóveis – agora já não! Acho-os, porém, insuportáveis. Sobretudo nos transportes públicos… quando mais preciso da minha música. Se há coisa que me irrita é aquela interferência desagradável nos aparelhos de som de cada vez que um telemóvel toca na proximidade. “…Can you hear them… / the helicopters… / I’m in New YorRrTzz-tZZ-tzZ RrTzz-tZZ-tzZ…/ no need for words nowRrTzz-tZZ-tzZ RTzz-tZZ-tzZ… / we sit in silence… / you look me in the eye direRTzz-tZZ-tzZ RTzz-tZZ-tzZ…”. Atiro violentamente com os auscultadores. Olho enfurecido em volta à procura do criminoso que acaba de assassinar a “minha” PJ Harvey. Encontro-o invariavelmente de telemóvel de última geração encostado ao ouvido e a iniciar uma conversa sobre trivialidades. Não é – nunca é – uma emergência. Ele vê-me. Ele percebe que é a causa do meu olhar assassino – se o olhar matasse… – mas reage ao incómodo de me fitar voltando a cabeça para o lado… e continuando a falar. “You met me… / I think it's Wednesday… / TheRrTzz-tZZ-tzZ RrTzz-tZZ-tzZ evening… / The mess we're in… RrTzz-tZZ-tzZ RrTzz-tZZ-tzZ”. Até hoje, quando ia a Lisboa, pelo menos tinha um refúgio… o Metro. Com as suas paredes de betão espesso. Mergulhado nas entranhas da cidade. Onde as ondas hertezianas – ou sejam lá que ondas forem – não conseguem penetrar. Continuo a ver-me reflectido no velho do catarro, na adolescente da Lux, no rapaz do cabelo seboso, no indiano de olhar vago. Mas, pelo menos, tenho a minha música… Que digo?! TINHA a minha música. Que hoje, o meu refúgio desabou. Sob o pretexto do desenvolvimento e da comodidade dos seus clientes – comodidade de que clientes? – o Metro de Lisboa autorizou as três operadoras nacionais a instalarem um sistema que permite a utilização dos abomináveis aparelhos ao longo de toda a linha azul… As outras seguem dentro de momentos. É o inferno. Não posso ouvir a minha música. Mas tenho de gramar uma secretária azeiteira a comentar, com alguém que presumo ser outra secretária azeiteira, as enfadonhas e pastosas ocorrências do seu fim-de-semana deprimente. Um destes dias, “rais ma partam” se não vou comprar um desses gigantescos rádios a pilhas. E se não lhe meto no deck uma cassete com temas escolhidos dos Iron Maiden. O céu me caia em cima se, quando o primeiro telemóvel irritante tocar, não aumentar o volume ao máximo. A ver se aguentam engolir o - RrTzz-tZZ-tzZ RrTzz-tZZ-tzZ - próprio veneno! E ai do primeiro que se queixe! Ai do primeiro… Desculpem lá a azia… o meu walkman ficou sem pilhas! |
Ai Raimundo, com um pé na Igreja e outro no Mundo!
O seu blog é muito interessante!
Um abraço amigo,
Daniela Mann