segunda-feira, março 27, 2006
Um homem não chora - (I Parte)

Eu, confesso, era um choramingas. Dos piores, devo acrescentar. Daqueles que, por tudo e por nada, desatavam num pranto inconsolável. Foi para aí até aos meus 14 anos. Chorava por dá cá aquela palha. Por dor ou desgosto. Por mínimos que uma e outro fossem. Chorava quando me cortava a aparar as batatas para o jantar ou quando entalava os dedos numa porta. Quando, por pura malícia, o meu irmão me estragava um carrinho. Quando caía a jogar à bola, a andar de bicicleta, a saltar muros e quando tombava da cerejeira da dona Clara. E depois outra vez quando chegava a casa com as calças de fazenda azul rasgadas. Soluçava ao ritmo do chinelo ou da colher de pau – ou o que quer que estivesse mais à mão – nas mãos da minha mãe.

A ver televisão, então, era um autêntico “bicho carpideiro”. Ainda me lembro do final do “Shane”. Com o miudinho a correr atrás do cowboy que cavalgava solitário na direcção das montanhas. A cada “don’t go Shane, don’t go” era nova enxurrada de lágrimas. Em tudo o que tivesse final triste, a choradeira era sagrada. Começava a tremer-me o lábio. Engolia em seco. Os olhos piscavam incessantemente até ficarem húmidos. Ainda tentava evitar. Mordia os lábios. Tentava não piscar os olhos. Inspirava em grandes golfadas. Pensava em coisas alegres… tudo para tentar segurar a primeira lágrima. Mas não havia remédio. Mais cedo ou mais tarde o dique cedia e inundava a manga da camisola.

Dor ou tristeza. Qualquer que fosse a situação que tinha provocado o vale de lágrimas, o meu pai repudiava sempre. Chamava-me Maria Madalena – e na altura pensava que estava a falar da filha da dona Fátima, que era nossa vizinha – e atirava-me com a frase do Redol: “Um homem não chora, nem que veja as tripas de outro nas mãos”! Não adiantou. Veio o E.T. e, com ele, de novo, o dilúvio. Eventualmente, ele desistiu. Limitava-se a deitar-me aquele olhar de desilusão que só um pai transmontano com um filho choramingas sente. E o meu pai é um daqueles transmontanos à antiga. Dos que trabalham de sol a sol e olham para os calos das mãos como se de medalhas se tratassem.



To be continued...
posted by Raimundo @ segunda-feira, março 27, 2006  
1 Obscenidades evitáveis:
  • At 28 março, 2006 00:44, Blogger Sinapse said…

    ... esse rótulo no lugar dos 'comments' assusta qualquer labrego, realmente!
    Era só para dizer que fiquei na curiosidade da continuação ...
    Cá passarei, e talvez reúna outra vez coragem para comentar onde não fui chamada ...

     
Enviar um comentário
<< Home
 
 


Nome: Raimundo
Morada: Algures em algum sítio, bem no meio de..., Portugal
Que mais queres tu?
Então vê o perfil

Blog aberto a fumadores. E não... não temos as dimensões estipuladas por lei para poder ter um espaço para fumadores. E como estamos num país de chibos, já estou mesmo a ver: um dia destes há uma denúncia anónima e aparecem-me aí uns estupores da ASAE para fechar o tasco!

http://www.totse.com/en/bad_ideas/ka_fucking_boom/atomic.html

Imbecilidades diárias
O Mundo desde o início
Mundos aliados
Mundos de subversão
Mundos da Cova
Mundos de sabedoria
Mundos em hibernação
Usurários

Powered by Blogger

15n41n1