terça-feira, março 28, 2006
Um homem não chora - (II Parte)

...continuação


Uma altura, por volta do Natal, as coisas não andavam muito famosas lá por casa. Não havia dinheiro. A mãe estava doente havia mais de um mês com uma daquelas crises que a deixavam semanas de cama e para as quais, até hoje, nenhum médico encontrou explicações. Não trabalhava, não ganhava. O velhote fazia uns biscates para um empreiteiro lá da terra que era mais conhecido pelos calotes que deixava em todo o lado do que, propriamente, pela solidez das casas que construía. Trabalhava, mas também não ganhava. Ainda por cima, o granizo do fim do Verão tinha destruído mais de metade da vinha e o dinheiro da Sandeman nem deu para cobrir a mão-de-obra das vindimas, quanto mais os sulfates e os enxofres.

Em casa havia mais três bocas para alimentar. E embora não se possa dizer que alguma vez, naquela casa, alguém tenha passado fome, a verdade é que, nessa altura, também ninguém corria o risco de morrer de fartura. Com a conta do banco a zero, sem dinheiro na carteira e demasiado dono do seu nariz para se prestar à humilhante cena de pedir dinheiro aos irmãos – que do alto da sua pose de empregados do Estado sempre haviam criticado as suas opções de vida – o homem faz a única coisa que lhe resta. Mete-se na motorizada e vai à procura do patrão. Não me lembro porque fui com ele. Só me lembro de lá estar. No restaurante onde o encontrámos. No Chachoila. Numa das pontas da sala interior, o sr. Manel tinha juntado três mesas para que o obeso empreiteiro pudesse almoçar com os seus amigalhaços dos copos e das petiscadas. Ocupavam todo o topo do salão. Quatro indivíduos de cada lado e o “rei” ao meio, com o vinho e as travessas de comida à sua frente. Uma versão cínica e reduzida da Última Ceia. E não sei se a imagem que guardo do facínora é real, ou se a terei deturpado ao longo de 15 anos de ódio, mas juraria que tinha a cara toda sebosa, com migalhas do pernil do leitão que segurava nas mãos a saltarem pelos cantos da boca enquanto falava.

Numa pose de submissão que nunca antes – ou depois – lhe havia detectado, o meu pai dirigiu-se àquele animal para lhe pedir, se faz favor e muito encarecidamente, que lhe pagasse os vários trabalhos para os quais o havia contratado. Que não tinha dinheiro. Que a esposa estava doente. Que não podia comprar os medicamentos. Que tinha mais dois filhos em casa. Que a dispensa estava quase vazia. Que olhasse pela nossa vida. Que se não pudesse pagar tudo – e ainda era uma soma considerável – que, pelo menos, arranjasse algum para ir remediando até ao Natal.

O biltre pediu ao sr. Manel que nos servisse um almoço e disse ao meu pai que conversariam no final. Quando o nosso prato chegou, já ele e os seus discípulos estavam a terminar e preparados para continuar a “procissão” até à próxima “capelinha”. Foi nessa altura que respondeu ao meu pai que não tinha como lhe dar o dinheiro que lhe devia, mas que pagava a nossa refeição. Foi o toque de malvadez final. A derradeira humilhação. Foi como se lhe estivessem a mandar, por estranha caridade, uma migalha quando ele reclamava o pão que era seu por direito. E este era o tipo de provocação que nunca havia deixado passar sem uma resposta “à transmontana”… com os punhos!

Instintivamente, e antecipando uma reacção violenta, coloquei-me entre o crápula e o meu velho. Não por ter pena do estupor, que só se perderiam as que caíssem ao lado. Mas porque me tinha habituado a ver o meu pai sofrer as consequências de se meter numa briga quando em inferioridade numérica. Ele costumava ser assim. Quando se esgotavam os recursos verbais para defender aquilo em que acreditava – e esgotavam-se sempre muito rapidamente – continuava a discussão usando outro tipo, digamos, de argumentos. E depois não media as consequências. Erguia-se, se fosse disso caso, para um exército. E no final da contenda, de roupa rasgada e cheia de sangue, citava o meu avô: “antes cair que agachar” – e eu pensava de mim para mim que, afinal, a estupidez é uma herança genética que deve ter saltado a minha geração.


Ponto final... amanhã.

posted by Raimundo @ terça-feira, março 28, 2006  
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