Dona Esmeralda morreu ontem. Os médicos declararam-na oficialmente morta às 14:34 horas. Eu recebi a notícia de um familiar na minha terra natal quase à hora do jantar. Perdi o apetite. Não como desde então. A Dona Esmeralda morreu… e com ela parte de mim, e de todos os que a conheceram naquela aldeia de Trás-os-Montes. A Dona Esmeralda morreu. Hoje o meu cinismo habitual está de luto. Não consigo articular um pensamento corrosivo. Não consigo pensar. Não consigo… A notícia da morte não foi propriamente um choque. Ela estava ligada às máquinas há quase dois anos e todos esperávamos a notícia mais tarde ou mais cedo. Mas alimentávamos a esperança de que sobrevivesse, pelo menos, mais um Natal. Dona Esmeralda tinha mais de cem anos e tocou a vida de todos os habitantes da aldeia, de uma forma ou de outra. Durante mais de 80 anos, enquanto as suas pernas o permitiram, Esmeralda trabalhou as terras de toda a gente naquela pequena comunidade. Não havia vinha, lameiro ou olival que ela não conhecesse. Não havia nos arredores trilho e atalho que não tivesse calcorreado quase diariamente, carregada de lenha ou de fetos para forrar os currais da aldeia. E durante anos era ela que dava o leite para os pequenos almoços das crianças da escola primária. Ainda antes de o Governo ter instituído essa medida a nível nacional. Dona Esmeralda já não tinha família. Chegou à aldeia em 1907, ainda quase criança, fugida de uma quinta do Douro onde era maltratada e violentada por um capataz sem escrúpulos. A Casa do Povo acolheu-a e ela retribuiu com uma gratidão absoluta até a doença e a velhice lhe tirarem a lucidez e a força. Teve apenas um companheiro. Foi nos anos 40. Engravidou-a duas vezes e desapareceu em vésperas de S. João. Dizem que foi a servir num casamento cigano. E nunca ninguém mais soube dele. Nem quiseram saber, porque, dizem, “era de má rês”! O filho foi enviado para a guerra colonial nos anos 60. Dizem que foi apanhado pelo inimigo. Dizem que o mataram a sangue frio a golpes de catana. Que o esquartejaram e que o comeram. A filha morreu há uns dez anos com uma doença mental que a fez viver em agonia os últimos meses da vida. Dona Esmeralda estava só. Contava o meu falecido avô que quando era criança ela tinha salvo um miúdo da idade dele de morrer afogado na Arruda, onde o rio faz remoinhos. Na minha memória fica a imensidão do seu ser. Esmeralda tinha quase um metro e oitenta de altura. E, quando eu era criança, achava que ninguém conseguia crescer mais do que aquilo. Quando eu nasci já ela era velhinha. Já não podia tanto como dantes. Já só trazia meia dúzia de molhos de vides dos Sumagrais. Mas ainda me lembro de andar às suas cavalitas, empoleirado nos seus ombros. E como o mundo parecia pequeno lá de cima. Ao logo de uma vida dedicada à comunidade, a aldeia soube reconhecer a sua importância. No Natal era a figura mais popular dos “Presépios Vivos”, e no S. Pedro era ela quem abria a procissão, à frente do palio do pároco, com duas grandes medalhas de ouro à volta do pescoço. Dona Esmeralda morreu. Agora a única coisa que resta para prolongar a sua memória é uma estátua à entrada da aldeia que a Junta de Freguesia mandou construir para a homenagear pelo seu 100 aniversário há quase cinco anos atrás. Uma peça maciça de granito, encomendada a um escultor de Zamora. E onde, por debaixo de uma pose epicamente orgulhosa, se pode ler:
“PELOS SEUS 100 ANOS, A JUNTA DE FREGUESIA HOMENAGEIA DONA ESMERALDA, VACA COMUNITÁRIA DA CASA DO POVO DESDE 1907, E DETENTORA DE DOIS RECORDES DO GUINESS PARA O MAIS IDOSO E O MAIS ALTO BOVINO DO MUNDO.” Dona Esmeralda morreu. E, com ela, a última réstea de humanidade no meu coração. |
Amigo Raimundo, agora deixaste-me de coração partido! Que história tão comovente! Dona Esmeralda morreu... e deixou um vazio na comunidade transmontana!
beijinhos