domingo, outubro 08, 2006
Os pulhas
Leio hoje no DN uma notícia sobre violência nas escolas – de alunos sobre alunos – e não consigo deixar de me rever nos personagens. No Daniel, na Sara e no Francisco. Nas vítimas, pois claro.

Leio o artigo e assaltam-me a memória os momentos de sobressalto de cada vez que tinha que entrar no pavilhão da sala de aulas pelo meio de duas filas cerradas de pulhas – uma de cada lado da porta – de braço levantado à espera de se abaterem com um ódio irracional sobre o cachaço dos marrões das mochilas. Assolam-me o pensamento todos os minutos que passei amarrado pelos atacadores a um qualquer poste do ciclo. E entre o 5º e o 9º ano devo ter estado atado a todos os postes – inclusive aos das balizas do campo de futebol e aos suportes das tabelas de basket – daquela escola. Recordo-me das “barrelas”, dos roubos do dinheiro do almoço, dos berlindes e dos piões, das chapadas e dos pontapés gratuitos. Da violência física e psicológica exercida sem motivo nem provocação. Quantos pensamentos de ódio não me passaram pela cabeça nesses momentos… Quantos planos de vingança.

Apesar dos tormentos a que era sujeito quase diariamente, continuava a ir à escola. Sem medo. Continuava a passar por entre as duas filas de braços a abater-se sobre a minha cabeça. A passar incontáveis minutos a tentar desatar os nós dos atacadores e a tirar lixo de dentro das calças. De vez em quando chateava-me a sério e lá voava um murro em direcção ao nariz mais próximo. Obviamente, depois, levava a dobrar ou a triplicar porque a força desses pulhas reside exactamente no número. Mas pelo menos recuperava algum do meu orgulho.

Eventualmente a tortura acabou. Aos poucos foram-me deixando em paz. Porque, quer dizer, um miúdo cresce. E os pulhas são pulhas mas não são estúpidos de todo ao ponto de se meterem com alguém que já tem o seu tamanho. Além do mais, todos os anos entra “carne fresca” para torturar, humilhar, mutilar. E eles recebiam-na com o mesmo entusiasmo com que eu, e os outros marrões das mochilas, abríamos os livros novos ainda a cheirar a cola ou as sebentas imaculadas ainda sem vincos à espera dos primeiros traços de tinta.

A escola acaba um dia. E os pulhas passam a ser uma má memória. Eventualmente esquecemo-los. Tal como aos planos de vingança e aos pensamentos de ódio que nutríamos por essa corja.

Mas o universo tem a sua própria maneira de equilibrar as coisas. De compensar. Hoje entro no café da aldeia à noite e vejo-os encostados ao balcão atrás de um copo de vinho e de um SG Gigante. Vestem camisola de lã rasgada e suja de cal, estuque, tinta ou cimento, tal como as calças de ganga e as botas de sebo. Usam um boné de plástico com o logótipo já quase imperceptível de uma empresa de materiais de construção. E os olhos fundos e faces rosadas denunciam o abuso do álcool. Vêem-me e tratam-me por “doutor”, “senhor doutor” e alguns, nem sei porquê, por “senhor professor”. E contam aos presentes, em voz arrastada, os tempos em que andámos juntos na escola. Omitem, obviamente, a parte em que me pontapeavam, atavam aos postes, agrediam e humilhavam, e exageram sempre a minha inteligência: como era esperto, e sabia muito, às vezes até mais que o próprio professor.

Pulha que é pulha nunca deixa de o ser. E não elogia por elogiar. Espera sempre alguma coisa em troca. Eu sei disso. Dou-lhe uma palmadinha cínica nas costas e peço ao dono do café duas cervejas. “Uma para mim e outra aqui para o meu amigo Zé, que ele merece”. E ele fica todo contente e gagueja um “obrigado”. E eu sorrio. Ele nem se apercebe, mas esta… é a minha vingança.
posted by Raimundo @ domingo, outubro 08, 2006  
9 Obscenidades evitáveis:
  • At 08 outubro, 2006 13:01, Anonymous Anónimo said…

    ai essas pulhas... mas deixa lá. ajudaram-te, de certa forma, a seres o transmontano cabeça dura que és, com uma mente maquiavélica (que se deixava apanhar pelas maldades que fazia, só para ser castigar e tentar fugir ao castigo imposto pela mãe). e finalmente terminou o ciclo e veio o secundário e com ele o aprender a tocar viola e as gaijas... ;)Mas pulhas ha-os em todo o lado, felizmente, para mim, eu passava que tal forma tão despercebida e discreta que eram raros os dias que era "chateada" (pq àquilo nem tortura posso chamar). ;)

     
  • At 13 outubro, 2006 01:14, Anonymous Anónimo said…

    Claro que eles provavelmente ganham o triplo ou o quadrupulo de ti, trabalhando nas obras ...

     
  • At 16 outubro, 2006 15:09, Anonymous Anónimo said…

    ... e além de ganharem o triplo ou o quadruplo, têm vantagens directas sobre ti ò dr. Raimundo!
    - fizeram-te "trinta por uma linha" quando eras um raimundo-da-era-pós-cueiros;
    - agora, ainda lhes pagas uma cerveja!
    E tudo à custa do quê? Do vazio elogio de que sabias mais que o professor? isso saído da boca deles é zero! a não ser que os rufias em transmontanos respeitassem a figura tutelar do docente, coisa que me parece duvidosa. Pelo menos no Douro Litoral ninguém o fazia...

     
  • At 18 outubro, 2006 00:58, Blogger Armando Alves said…

    Lá se vai o darwinismo pela sanita abaixo, pois afinal os mais fortes não prevalecem.
    Agora, para castigo do "sr. professor", surgem na ilustre figura de burocratas empossadas de coisa nenhuma e que usam dos seus galões hierárquicos para distribuírem o estalo no cachaço em forma de recibo verde e de principio de Peter.
    Vê lá tu o que preferes: o mânfio que te fazia a vida negra às claras, ou o exmo. sr. comendador que te deixa bem claro a tua vida negra :).

    Mal por mal, preferia esses tristes que ao menos eram inconsequentes e sabíamos o que esperar deles.
    E sempre lhes podíamos dar respostas erradas quando copiassem pelos nossos testes.

     
  • At 19 outubro, 2006 17:04, Anonymous Anónimo said…

    bom template e bom header. bom post também. já agora apresento-me: escrevo também na geração rasca.

     
  • At 25 outubro, 2006 00:10, Blogger Morena said…

    Tens excelente template e header, é verdade. Perfeitos. O texto é muito bom. Excelente crónica.
    Ainda no outro dia encontrei na Papelaria Fenandes um aluno que há 3 anos salvei de uma sova dos mais velhos - que o esperavam à saída. Detesto cobardes a bater nos mais novos. Tenho-lhes um pó.
    Peguei no puto, que andava no 8º ano e era rezingão, mas frágil, fisicamente, meti-o no carro e levei-o a casa. Detesto violência entre alunos, que jhá existia no meu tempo, que sempre existiu. Detesto essas estratégias de poder.

     
  • At 25 outubro, 2006 05:36, Blogger Raimundo said…

    Amigo Armando Alves... Darwin nunca disse que sobreviviam os mais fortes. Disse que sobreviviam os mais aptos e os que melhor se adaptassem à mudança.

    Foi só um reparo meu amigo...

     
  • At 25 outubro, 2006 14:53, Blogger Unknown said…

    Raimundo:

    Não ligues. Vozes de burro não chegam ao ...

     
  • At 26 outubro, 2006 11:49, Blogger Armando Alves said…

    Por darwinismo tenho que dizer darwinismo em sentido estrito, neo-darwinismo ou a sua variante de selecção natural ?

    O termo "mais forte" seria aplicado à variante da selecção sexual, por se tratar da capacidade dos pulhas possuírem certas características que favorecessem a sua reprodução. E na adolescência, o normal era eles terem a sorte toda.

    Tratando-se de características que se transmitem de geração em geração, creio o termo forte poderia ser substituído por "mais apto", apesar da abordagem darwinista se aplicar sobretudo a características biológicas.
    Aparecerem mas foi uns tipos depois, que sob o nome de darwinismo social, arranjaram lenha para cunhar a expressão do mais forte. O Charles sempre preferiu "selecção natural", em que o ser mais apto é um efeito e não uma causa. Assim de repente, sempre me parece mais fácil passar para a próxima geração o facto de ser bronco, do que a capacidade de ser rico ou inteligente.

     
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