sexta-feira, janeiro 13, 2006
Uma sexta-feira especial
Hoje é uma sexta-feira especial para eles. Algures. Ela vai sair do trabalho. Ele espera-a do outro lado da rua. Ela veste uns jeans e uma camisola de lã cor-de-rosa. Ele tem um fato de bombazina castanho escuro e usa óculos. Ela não o vê. Ele só a vê a ela.

Ela pára, tira algo da mala, acena adeus aos colegas. “Bom fim-de-semana”. Ele acena-lhe timidamente do outro lado da rua. Ela não o vê. Ele só a vê a ela.

Ela desce a rua em direcção ao Metro. Ele vai atrás dela. Atravessa a estrada e caminha uns dez metros atrás dela. Passa os torniquetes e desce as escadas sempre atrás dela. E ela não o vê. E ele só a vê a ela.

Ela entra no vagão. Ele entra depois dela. E a montanha de gente empurra-o para ela. Ele fica mesmo ao lado dela. Cheira-lhe o perfume que colocou no pescoço antes de sair do escritório. E com as costas dos dedos afaga-lhe discretamente o cabelo dourado da nuca. E ela não o vê. Nem quando saem cinco estações depois. E ele só a vê a ela. E à camisola que brilha cada vez menos à medida em que a noite rouba a luz ao seu rosa.

Atravessam o parque e ela mora no próximo quarteirão. Ele sabe onde e por isso não tem pressa. Deixa-a ir na frente, chegar primeiro, preparar o ambiente. Hoje é um dia especial para eles. Ele chegará depois. E entrará. E ela vai ficar surpreendida. E ele dançará com ela. E beberão vinho tinto de balões de cristal. E farão amor. Mas antes vai ficar cá fora. Vai admirar a felicidade dela da escuridão da rua. E ela não o vai ver. Mas ele vai vê-la a ela.

E depois vai entrar. Devagarinho. E ela não vai dar conta. Ele caminha no corredor escuro. Ela está à entrada do quarto. Acabou de tomar banho. Está de costas. E ele abraça-a. Ela principia um gritinho de surpresa. Mas ele põe-lhe um pano perfumado sobre a boca. E ela já não grita e não o vê. E ele só a vê a ela.

Ela vai acordar com dor de cabeça, uma venda nos olhos e um trapo na boca. Vai estar semi-nua. Amarrada ao vão das escadas que dão para o segundo piso da casa. Ele vai estar à frente dela. E vai dizer-lhe o quanto a ama. E ela vai chorar. E ele também. E ele faz-lhe promessas. Ele vai sentir o medo dela. Ele diz-lhe para não ter medo. Diz-lhe que não deixa que nada de mal lhe aconteça. Que ela nunca o viu mas que ele só a via a ela.

Amanhã. Ela vai continuar amarrada pelos pulsos ao vão das escadas. E a corda é a única coisa que segura o seu tronco erecto. Está sentada no chão húmido e vermelho. E vários homens de uniforme espalhados pela sala tiram fotografias e assentam palavras em pequenos blocos. Falam em violação e homicídio. Falam em tortura. Perguntam se se escreve degolamento ou degolação. E ela está fria. E ele não está ali. Ele está em outro sítio a sorrir. A pensar que agora as coisas são como deviam ser: Ela vê-o. Ele não tem que a ver a ela.

Tenham uma especialmente boa Sexta-Feira... 13.

posted by Raimundo @ sexta-feira, janeiro 13, 2006  
6 Obscenidades evitáveis:
  • At 13 janeiro, 2006 11:43, Blogger Luis Beirão said…

    Andas a ver muitos filmes do Hitchcock, transmontano...
    Ou então é excesso de episódios do CSI.

     
  • At 13 janeiro, 2006 12:18, Blogger post_it said…

    He's back!!!!!!!!!!!!!!!!!!
    ALELUIA!

     
  • At 13 janeiro, 2006 16:12, Blogger Rui Oliveira said…

    Gostei muito! Muita história em pouco texto... vou voltar mais vezes!

     
  • At 13 janeiro, 2006 23:54, Anonymous Anónimo said…

    Tenho-te a dizer que o texto está super criativo e bem escrito. Acho que dedicando-te à escrita eras capaz de ter futuro.

     
  • At 14 janeiro, 2006 01:17, Anonymous Anónimo said…

    MEU CARO TRANSMONTANO, COLEGA E AMIGO...e com esta mataste-me!!!! ADOREI!!! que criatividade!!! a melhor historia de sempre!!! é que nem vontade me deu de brincar, mas simplesmente de falar verdade!!! extraordinario!!!

     
  • At 27 janeiro, 2006 00:42, Anonymous Anónimo said…

    Porra k ateh me deu um arrepio na espinha. ouve lah... tu tens uns traumas de infancia por resolver nao tens?

     
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