Todos os anos... todos os santos e miseráveis anos, por esta altura, me acontece o mesmo. Natal após Natal digo a mim mesmo que “aprendi a lição”, que “não vai voltar a acontecer”, que “para o ano é que já não me apanham”. Mas com o aproximar da quadra a minha determinação esvai-se ao avistar da primeira caixinha com luzinhas coloridas.
Esta tem 18 metros de extensão. Aquela tem 50. A outra dá para exteriores e interiores. A seguinte têm lâmpadas maiores. Lá mais à frente há umas dentro de uma mangueira muito pouco maleável. Na prateleira do lado estão umas com formas de renas, de Pai Natal, de estrelinha. Olha... lá na ponta estão umas com quinhentos e tal leds. Nenhuma destas me interessa. Nenhuma destas me satisfaz. Eu quero mesmo umas iguais àquelas que tinha em criança. Pequeninas, de várias cores e... que pisquem. Sobretudo, que pisquem! Este é o critério primeiro da minha escolha. Depois vêm os outros.
Ora, as minhas lâmpadas preferidas são mesmo as mais ranhosas e fatelas da família das iluminações de Natal. Daquelas que se emaranham completamente antes de serem colocadas à volta da árvore. São também – coincidentemente ou talvez não – as mais baratas do mercado. Aliás, quase só se encontram em lojas dos 300 e estabelecimentos chineses. “Pois então... é aí mesmo que eu vou”.
Não preciso de procurar muito. Logo na primeira fila de prateleiras, entre as bolinhas metalizadas e as fitas brilhantes lá estão elas... as minhas lâmpadas. Acondicionadas dentro de uma singela caixa de cartão – também a mais ranhosa e fatela caixa da família das embalagens – que explica numa frase repetida em cinco línguas que se trata de um conjunto de 140 lâmpadas coloridas que piscam. “Óptimo... os critérios estão todos cumpridos”!
Peço a senhora da caixa se as pode ligar à corrente... “só para confirmar que estão a piscar”. E a senhora liga-as. E elas piscam.
Contente da vida, apresso-me para casa. Tenho que ligar a iluminação. Quero ver a minha árvore a piscar e as bolinhas vermelhas e amarelas e verdes a reflectirem intermitentemente distorções de cor na minha sala escura. Ligo a tomada.
E as luzinhas piscam. E é um espectáculo maravilhoso que me transporta no tempo. De repente tenho seis anos e estou na minha aldeia natal sentado de cócoras, hipnotizado por um presépio feito com um pinheiro verdadeiro e lodo que a minha mãe me ensinou a arrancar da pedra em grandes pedaços. De repente vêm-me à memória o par de pistolas de “cóboi”, com coldre e tudo, e a estrela de “xerife” que o “Menino Jesus” me deixou no primeiro Natal de que me lembro. E lá fora cai neve sobre a neve dos dias anteriores. E pela janela vejo as luzinhas de Natal da casa do Luís e do Alex a acenderem e a apagarem e a acenderem outra vez. E da cozinha vem um cheiro a rabanadas com canela e a bolinhos de bacalhau e a vinho tratado. E na televisão a preto e branco está a dar um filme de vikings com o Kirk Douglas e o Michael Curtis. E a minha mãe chama para jantar. E eu digo que já vou. Mas continuo hipnotizado em frente ao pinheiro reluzente. E ela volta a chamar para a mesa. Uma. Duas. Três vezes. E o meu pai espreita pela porta da sala. “Então rapaz... como é? Tenho que te ir aí buscar?... O meu pai tem o condão de acabar com o feitiço. Ao meu pai não se diz “já vou”... diz-se “’tou a ir”.
A viagem no tempo termina. Não quero gastar tudo numa noite só. Para amanhã deixo as visitas a casa da minha madrinha, que tinha sempre três pares de meias e 20 escudos para me dar. Ou da minha avó (três pares de meias e 10 escudos). Ou do meu tio Tó (presunto com orelhas de abade e vinho tratado com mais de 20 anos). Como eu gostava de ir a casa do tio tó. Mas essa vou deixar para o fim... mesmo para o dia de consoada!
Mas não vai haver amanhã. Nem, muito menos, dia de consoada. Porque aconteceu uma catástrofe. Ocorreu o pior que podia ocorrer: as minhas luzinhas deixaram de piscar e perderam a capacidade de abrir o portal espacio-temporal que me transportava à infância.
As minhas luzinhas já não piscam. Amanhã um chinês vai morrer! |