O Natal acabou… Louvado seja o Senhor! Acabou o cheiro a bacalhau com couve cozida, bacalhau assado, bolinhos de bacalhau… E, por um ano, não mais vou ter que gramar com rabanadas e filhozes. Nem com arroz de polvo. Nem com Bolo Rei com aqueles ingredientes fluorescentes que o pessoal acredita que já foram fruta outrora. Nem com vinho espumante italiano a imitar champanhe francês comprado em promoção num supermercado alemão. Acabou o corrupio de familiares que já não via desde o último Natal. Acabaram os comentários senis da tia Maria, para quem todos os anos cresci sempre mais um bocadinho, estou sempre muito diferente e já pareço um homem. Não mais terei que responder com um sorriso hipócrita às piadas do tio Zé sobre o meu cabelo comprido, a minha barba por fazer, de como pareço um drogado e de como só me falta o brinco no nariz. Apetece-me dizer “tu lá sabes… o teu filho é que está numa clínica de desintoxicação”! Mas… é Natal. E deixo-me arrastar pela onda de fingimento geral e cinismo disfarçado como manda a natalícia tradição. E torno-me num deles. Um zombie a cuspir frases feitas e a responder com gargalhadas a comentários desprovidos de qualquer tipo de piada. Terminaram, por fim, os constrangedores momentos à volta da lareira em que temos que responder como nos está a correr o emprego… por que não vamos trabalhar para o banco onde já está o primo… por que não estamos ainda casados… por que ainda não trocámos o carro tal como o primo que trabalha no tal banco onde nós deveríamos estar a definhar também… por que não visitamos mais a família… O Natal acabou… Louvado seja o Senhor! Agora é tempo para retemperar forças… para avaliar os estragos… para contar os pares de meias. E para esvaziar as caixas dos “ferreros rochés” e dos “mon cherries” antes que venha o calor e eles percam as propriedades que fazem deles únicos. É tempo de sentar no sofá, beber uma cerveja, ver um filme violento e ouvir um disco hard-core para purgar o organismo do “cinema Pai Natal” e dos cantos gregorianos e da Nana Mouskouri. Acabou… e agora tenho mais um ano para me preparar para nova investida familiar. Porque, pelo próximo Natal, continuarei a fazer o que gosto apesar de pagar pouco. Continuarei a desprezar o labrego do primo que trabalha no banco onde todos querem que eu vá trabalhar. E continuarei a ter relações sexuais com uma rapariga com quem nunca vou casar no banco traseiro do meu carro que está velho demais para aguentar duas viagens de 200 quilómetros para visitar a família. A família… O diabo que os carregue… até ao próximo Natal! |